Técnica e tecnologia do parto: a produção e apropriação do conhecimento tecnológico por parteiras tradicionais.

MARIA JURACY AIRES

UNIVERSIDADE TECNOLÓGICA FEDERAL DO PARANÁ PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TECNOLOGIA

Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Tecnologia. Programa de Pós-Graduação em Tecnologia, Universidade Tecnológica Federal do Paraná.
Orientadora: Profa. Dra.Marília Gomes de Carvalho
Co-orientadora: Profa. Dra. Sonia Ana Leszczynski

 
 
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INTRODUÇÃO

“O nascimento não se restringe a um ato fisiológico, mas testemunha por uma sociedade, naquilo que ela tem de melhor e de pior”. Jacques Gélis (In: MOTT, 2002, p.399)

Ser mulher e mãe; e ter trilhado uma trajetória profissional como psicóloga e Doula1 apoiando física e emocionalmente as mulheres no processo de tornarem-se mães, constituíram-se fatores decisivos para mobilizar nosso interesse pela temática da reprodução, e a maneira como a sociedade atual considera o evento do parto e nascimento.

O parto é pensado neste trabalho como uma experiência vivida genuinamente pela mulher que dá a luz, e o nascimento, como o momento exato de uma criança iniciar seu curso pela vida no mundo exterior ao ventre materno. Ambos – parto e nascimento – acontecem simultaneamente e compõem o processo de um fenômeno comum a toda humanidade: parir e nascer.

Não obstante a universalidade dos aspectos fisiológicos, o parto e o nascimento sofrem alterações segundo as regras ditadas pela sociedade de acordo com o contexto cultural. Isto determina que o parto, assim como os demais processos envolvidos no fenômeno da reprodução, jamais possa ter sua representação e definição como um evento totalmente natural. A história presencia variações na forma como os seres humanos vivenciam a reprodução. Estas diferenças são visíveis em diversos aspectos: na relação que cada mulher tem com o processo; na comparação de modelos tradicionais com modelos ocidentais; na maneira como culturas primitivas e culturas industrializadas lidam com o nascimento (GUALDA, vídeo, 2004).

Dentre os diferentes modos de organização social, cada sociedade, segundo Cosminski (1978, apud GUALDA, 2002, p.41) “tem sua maneira peculiar de organizar e moldar a vivência da crise biológica do nascimento” ajustando assim, o evento do parto às normas socioculturais vigentes.

1 Doula é uma palavra grega que significa aquela que serve a outra mulher, referindo-se à assistência prestada por uma mulher especialmente treinada para assistir a outra no período perinatal. Seu trabalho consiste em orientar e ajudar a parturiente a encontrar posições confortáveis para o parto, mostrar formas eficientes de respiração, relaxamento, e, sobretudo, aplicar técnicas de alívio não farmacológico da dor.

O universo que configura a assistência à mulher na fase reprodutiva, compreendida desde a concepção ao nascimento, tem gerado inquietações em muitos estudiosos de diversas áreas de conhecimento na sociedade atual. Pesquisadores oriundos da enfermagem, antropologia, medicina, história, psicologia, entre outros, vêm se dedicando ao estudo desse fenômeno, que com o advento da modernidade, tem se distanciado de suas raízes culturais.

Comprometidos com esta temática, num movimento de “tatear”2 um objeto focal para nossa pesquisa, visualizamos não só um caminho a ser trilhado como também – parafraseando Bachelard (apud CAMPENHOUDT & QUIVY, 1992) -, a conquista, a construção e a verificação de um fato científico.

Num exercício de experimentar texturas, fazer tecituras e articulações que pudessem lançar luz sobre o tema da pesquisa, enveredamos para o campo da antropologia. A antropologia nos parece um “campo minado” de saberes que brotam das entranhas, capazes de desvendar segredos que dizem respeito ao âmago das camadas mais fundantes de uma sociedade. Por conta desta especificidade, também poderá lançar sobre a temática do parto – sobretudo no que diz respeito às técnicas -, uma vez que o ser humano, por ter se destacado da natureza, sempre buscou aperfeiçoá-las para sobreviver. Esta disciplina parece ser dotada de um olhar nada míope, identificando detalhes que outros olhares mais apressados não conseguem ver.

Antropologia nos lembra arqueologia, quando se dedica ao meticuloso trabalho de desenterrar ossos e “cacos”, buscando nos vestígios deixados por outras culturas, as pistas bem marcadas para compor uma história. Numa espécie de mosaico estas pistas vão se agrupando e, qual uma brincadeira de quebra cabeças, uma história vai sendo montada. Uma história construída coletivamente, na medida em que cada um dos protagonistas ou espectadores se identifica com um ou outro pedacinho de osso, de cerâmica, de traços que compõem este grande painel, este imenso desenho da humanidade.

Humanidade cuja visão, hoje fragmentada pelos princípios cartesianos, tende a perder de vista este delicado trabalho, necessário e imprescindível para o bicho


2 Nossa trajetória profissional prestando ajuda à parturiente fez com que o sentido do “tato”, por conseguinte as mãos – da massagem, do gesto de oferecer “uma força” – estivessem sempre em evidência.


homem tornar-se humano. Aliás, o único bicho que não nasce pronto, que precisa ser moldado, ensinado, construído aos poucos e uma peça de cada vez. Enfim, a antropologia, nos parece, além de ciência, ter a sapiência de zelar pelo que já passou, de ter o cuidado de não descartá-lo rapidamente, ao menor aceno de uma novidade.

Davis Floyd3, sob o foco da Antropologia da Saúde, pesquisa atualmente as parteiras da América Latina. Ela diz que as parteiras pós-modernas de hoje são orgulhosas de seu poder de organização, que suas antecedentes na parteria não podiam atingir. Organização obtida, inclusive, a partir dos avanços na área da informática, possibilitando que as parteiras troquem informações por e-mail e articulem encontros nacionais e internacionais de parteiras tradicionais, realizando trocas de experiências e de saberes4.

A citada antropóloga mencionou o “corredor estreito” da modernidade, que hoje se vê apertada entre a tradição da antiguidade e os progressos da pós- modernidade. E que então uma harmonia possível seria conciliar as duas coisas, de forma que um novo paradigma devesse incorporar o melhor e transcender as limitações dos que vieram antes.

Na sociedade moderna, que é “tecnocrática”, “hierárquica” e “burocrática”, não só o parto, como todo o processo da reprodução, está inserido num contexto em que a organização social acontece “em torno de uma ideologia de progresso tecnológico” (DAVIS-FLOYD, 2004, p. 24), em cujo pano de fundo mais denso estão os ditames imperialistas do sistema capitalista.

No entanto, apesar de a maioria das pessoas – o censo IBGE 2000 informa que “a população brasileira está dividida em 84% urbanos e 16% rurais” (SILIPRANDI, 2004, p.121) - habitarem o espaço moderno e urbanizado, orquestrado pela dinâmica socioeconômica pautada no acelerado desenvolvimento técnico-científico, há comunidades que se orientam por outros modos de viver e diferentes códigos culturais.

3 Antropóloga, em apresentação no II Congresso do Parto Ecológico - RJ, 2004.

4 Em setembro/2004, na Bahia, aconteceu o encontro da Rede Nacional de Parteiras Tradicionais, organizado pela Organização Não Governamental “Cais do Parto”; e em julho/2005, no México, deu- se o Encontro Internacional das Parteiras Tradicionais.

Quanto a este aspecto vale citar Anthony Giddens (2002, p.138), a respeito do declínio que ocorre nos contextos da sociedade moderna, referente às atividades rituais das “principais transições da vida – nascimento, adolescência, casamento e morte”. Segundo o autor, os rituais promovem importante amparo psicológico para o indivíduo enfrentar as dificuldades inerentes a tais transições. Assim, o parto assistido nos moldes da parteira tradicional, pode ser considerado como uma oportunidade de a mulher viver esse momento da vida como um verdadeiro ritual de passagem.

No entanto, há que se considerar que a sociedade atual atende apelos e está em parceria com sistemas econômicos e políticos. E as parteiras tradicionais, que aparentemente vivem outra realidade social e cultural, talvez também sofram as transformações inerentes à dinâmica de um sistema racional e globalizante.

Apesar de dedicarmos nossa atenção neste trabalho sobre a forma de trabalho das parteiras tradicionais, não é nosso interesse desconsiderar o conhecimento científico, os sofisticados artefatos tecnológicos e a metodologia de trabalho utilizada pela medicina moderna. Afinal, impossível ignorar a eficácia técnica dos procedimentos realizados e das vidas que são salvas a partir do progresso da medicina e de outras áreas do conhecimento que a respaldam, como a informática, a robótica, entre outros.

Porém, apesar da técnica eficiente, a sociedade moderna, tecnológica, “aberta vinte e quatro horas”, talvez esteja carecendo de revisar o seu ritmo. A velocidade dos computadores parece que nos contaminou e não há um antídoto para mantermos uma distância saudável da máquina - que faz café, que faz carro, que faz dinheiro e que faz pessoas.

Milhares de pessoas que estudam, trabalham, investem a vida num ideal, numa profissão, talvez estejam sendo construídas mecanicamente como numa “linha de montagem” por esta máquina – ao invés de “peça por peça”, e “uma de cada vez”. Como este tipo de conhecimento estaria influenciando a ética no comportamento social? Pode ser que o profissional “construído” por esse mecanismo autômato, não tenha oportunidade, justamente pela pressa imposta pelo mercado, de ter um momento de questionamento crítico. Será a eficácia técnica suficientemente provedora da vida e da saúde? De que saúde se estaria tratando nos dias de hoje? A física? A mental? A emocional? A espiritual?

Em se falando do parto e, consequentemente, dos sujeitos envolvidos: a mãe, o pai, o bebê, a família, a comunidade, a sociedade; talvez seja reducionista uma visão meramente mecanicista de um evento que é tão divinizado para alguns, sublime para outros, e marcante na vida de todos.

Ao investigar as técnicas utilizadas por parteiras tradicionais vislumbramos a possibilidade de desvelar uma realidade que pode estar soterrada sob as malhas tecidas a partir do comando de organismos poderosos, que vão desde a hierarquia do conhecimento às barreiras levantadas historicamente pelas dicotomias hegemônicas de gênero. Talvez não por acaso – e a pesquisa poderá nos apontar - a tecnologia e o conhecimento científico estão do lado masculino e as parteiras e o conhecimento popular, tácito, estão do lado feminino.

Considerando-se que os mestrados são oferecidos para formar pesquisadores, é oportuno salientar que o ato de pesquisar, investigar, fazer leituras do real, tem um sabor de aventura. Tem a surpresa de fazer descobertas. Tem um cheiro de possibilidade de mudanças. O ato de pesquisar apresenta-se, sobretudo, como uma ferramenta eficaz para descortinar a realidade e vislumbrar novas visões do mundo, lançando um olhar desconfiado sobre fenômenos aparentemente sem importância. Isso tudo, sem dúvida, é muito estimulante e fascinante.

Por outro lado, pesquisar significa constatar que a realidade também é construída a partir de diversos atores e, principalmente de uma vasta gama de pensamentos, de culturas, de vontades, de vaidades, de poderes. De coisas boas, justas e corretas; mas também de coisas más, injustas, desonestas, desleais.

E ao pesquisador vai caber: utilizar-se da metodologia, dos fundamentos teóricos, das amostras e produção de dados, das análises interpretativas e de todos os recursos acadêmicos objetiva e cuidadosamente testados, para única e exclusivamente desvendar a realidade. Todo o trabalho e investimento pessoal, institucional e social, resultarão em apenas tirar o véu, demonstrar, apontar e evidenciar os fatos sem, no entanto, conseguir por si só, intervir ou transformar essa realidade.

Carvalho (1997) aponta o entrelaçamento da tecnologia com a sociedade, com as pessoas, com a vida das pessoas. Esta leitura nos despertou um “outro olhar” para a realidade do cotidiano das pessoas na sociedade e seus significados. Este olhar “antropológico” tornou possível constatar as intenções e ideologias

sorrateiramente embutidas pelas forças dominantes no cotidiano dos seres humanos que transitam pelas ruas, pelos terminais de ônibus, praças etc. Percebe-se, por exemplo, que muitos destes transeuntes comem pipocas para preencher o vazio do estômago, ao mesmo tempo em que consomem supérfluos para preencher os cofres ambiciosos de um sistema fortemente ancorado numa lógica de geração de lucro a qualquer preço, mesmo que seja a voraz criação de necessidades. E assim, o sujeito “engana” a fome com um pacote de pipocas - alimento incapaz de suprir, minimamente, suas necessidades vitais de nutrientes -, mas faz uso de um aparelho celular atendendo, quase compulsivamente, o convite imperativo ao consumo.

Tratando-se de um mestrado interdisciplinar em tecnologia, cuja área de concentração se situa na interação desta com a sociedade, alguns critérios de escolha pela abordagem teórica se fez a partir mesmo desse entrecruzamento. Interceptar a realidade social e, por continuidade, o sujeito social, com a técnica e a tecnologia, impõe a compreensão destes conceitos, aparentemente assimilados pelo senso comum, principalmente se julgado pelo seu uso corrente no vocabulário popular.

Neste sentido, pesquisamos teóricos que já se debruçaram sobre o tema da técnica e da tecnologia articulando-o com os aspectos sociais, que possam nos nortear a partir de uma perspectiva histórica e crítica.

Assim, neste trabalho de investigação acerca da produção, apropriação, transmissão e transformação do conhecimento utilizado por parteiras no atendimento ao processo do parto e nascimento, indagamos:

- Quais são as técnicas utilizadas pelas parteiras tradicionais?
- Como elas adquirem o conhecimento sobre as técnicas do parto?
- Quais são os principais artefatos tecnológicos utilizados por elas na assistência ao parto?
- Como as mulheres que são atendidas por elas percebem o atendimento?

A partir destas perguntas foram delineados os objetivos da pesquisa que foram definidos como:

Objetivo Geral:

Compreender como se dá a produção, a apropriação, a transmissão e a transformação do conhecimento tecnológico no processo do parto domiciliar, acompanhado por parteiras tradicionais.

Objetivos Específicos:

- Investigar as técnicas, os artefatos e os procedimentos utilizados pelas parteiras;

- Investigar como as parteiras aprenderam e/ou transformaram este conhecimento técnico;

- Conhecer as formas de difusão deste conhecimento.

A metodologia adotada foi a pesquisa qualitativa, aplicando técnicas de entrevistas semi-estruturadas com parteiras em três localidades diferentes. Realizamos vinte e duas entrevistas que foram gravadas, transcritas e interpretadas à luz de teoria pertinente.

As localidades escolhidas para compor o universo da pesquisa foram: o Município de Dr. Ulysses, localizado na Região do Vale do Ribeira - PR; e a Vila da Barra do Superagüi, localizada na Ilha do Superagüi, no litoral do Estado do Paraná.

Além de entrevistar parteiras dessas duas localidades, também fizeram parte do estudo entrevistas realizadas com as parteiras tradicionais do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais. O encontro com as parteiras mineiras ocorreu por ocasião da participação da autora, como ouvinte, do curso de capacitação de parteiras tradicionais, promovido pelo Governo do Estado de Minas Gerais em parceira com a ONG – Organização Não Governamental, Curumim-gestação e parto.

Nossas indagações neste trabalho são, portanto, acerca da apropriação do conhecimento e dos saberes. De que maneiras os sujeitos vão criando, transformando e adequando o conhecimento adquirido, para buscar soluções na luta pela vida? Que abordagem teórica ou histórica explicaria a origem dos saberes - e sabores, subjetivos e inerentes a cada saber conquistado -, muitos hoje já considerados simples e automatizados?

Seguindo o rumo destes questionamentos, estruturamos o trabalho conforme apresentado a seguir.

No primeiro capítulo, apresentamos uma visão panorâmica dos aspectos teóricos concernentes ao tema e problemática da nossa pesquisa. Para tanto buscamos em autores que já se debruçaram sobre o assunto, os conceitos-chave imprescindíveis para realizar nossa investigação. Dentre estes conceitos, destacam- se os de técnica; tecnologia; conhecimento tácito; conhecimento científico; a hierarquização de um conhecimento sobre o outro. Ao mesmo tempo, tentamos dialogar com os autores, numa tentativa de nos posicionar acerca da relação existente entre suas teorias e o nosso objeto de trabalho.

No segundo capítulo são explicitados os passos necessários para percorrer o caminho em direção ao objeto, e as ferramentas que utilizamos para a viabilização da pesquisa e a construção dos dados empíricos. Neste capítulo também esclarecemos a razão da opção pela modalidade da pesquisa qualitativa, utilizando- se como recurso de coleta de dados, a entrevista semi-estruturada e a história oral.

A partir do terceiro capítulo apresentamos os resultados obtidos na pesquisa. Inicialmente fazemos uma descrição das comunidades pesquisadas, suas principais características populacionais, socioeconômicos e situação geográfica. Em seguida, trazemos a caracterização das parteiras entrevistadas, apresentando os dados pessoais como idade, profissão, grau de escolaridade, a idade que tinha quando atendeu o primeiro parto e o número de partos atendidos até a data da entrevista. Após um quadro sumário realizamos a análise e interpretação destes dados, à luz da fundamentação teórica apresentada no primeiro capítulo.

No quarto capítulo apresentamos e analisamos os dados construídos ao longo do processo, visando responder as indagações que originaram o presente trabalho. Para cumprir este propósito, optamos por buscar nas falas das entrevistadas, os elementos para compreender como o conhecimento de partejar é produzido, apropriado, transformado e transmitido.

Nas considerações finais tecemos comentários pessoais, posicionando-nos sobre diferentes aspectos durante todo o processo da realização do trabalho.